O CORPO, A DOR E O DESEJO DE SER TEMPO.

Daniel Conte

A inteligência artificial não é uma novidade. A novidade é o amplo acesso que nos foi dado às suas plataformas. Ainda nos anos 1950, artistas pioneiras como Nina Sobell e Vera Molnar começaram a explorar as possibilidades estéticas oferecidas por processos computacionais. Essas mulheres abriram caminhos que, hoje, permitem a integração da IA como ferramenta para uma investigação estética séria e não apenas para seu uso recreativo no qual são gerados retratos do Papa vestindo alta costura. Aquelas experiências iniciais demonstram que a tecnologia é, acima de tudo, uma aliada do fazer artístico, ampliando as fronteiras do que pode ser criado e como pode ser percebido.

Nesse debate, é inevitável traçar paralelos entre as reflexões de Walter Benjamin em seu texto fundamental A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Para Benjamin, a reprodução não destrói necessariamente o valor artístico, mas o desloca, permitindo novos usos e significados. A IA, nesse sentido, vem como uma reinterpretação desse deslocamento, conectando-se à tradição das vanguardas que desafiaram as estruturas que o sistema da arte estabelecido cria por convenções próprias.

Sempre que a arte enfrenta um momento de grande tribulação, em que algo realmente novo surge, ela acaba por se reinventar através de uma revolução estética autoimune. Basta olhar para as plataformas generativas atuais e para artistas que as utilizam como ferramentas críticas e conceituais, propondo uma nova etapa em suas investigações estéticas. Refik Anadol, por exemplo, transforma dados em instalações imersivas que interrogam a ideia de percepção e memória. É um processo que ecoa as provocações de Marcel Duchamp com seus ready-mades: questionar o que faz de algo uma obra de arte e quem decide esse valor.

A crítica à IA frequentemente ignora que delegar parte do processo construtivo à máquina não é uma heresia moderna. Roy Lichtenstein, e as esculturas metálicas concebidas por ele mas executadas por profissionais habilidosos, já colocavam em xeque a relação entre autoria, esse conceito que só veio fazer parte do vocabulário da arte na Renascença, e execução. Do mesmo modo, a arte conceitual dos anos 1960 e 1970 separou ideia e produção, demonstrando que o conceito é, algumas vezes, mais relevante do que a materialidade de um produto. Até as esculturas invisíveis de Salvatore Garau, vendidas (e adquiridas) como gestos artísticos, seguem esse mesmo caminho: o valor não reside apenas no que é tangível, mas também na experiência e no discurso.

Essa discussão chega a um ponto intrigante quando comparamos algo completamente orgânico, como a infame banana de Maurizio Cattelan e a revolta geral que sua venda por milhões suscita, a uma imagem como Théâtre d’Opéra Spatial, de Jason M. Allen, gerada com a ajuda da IA e agraciada com um prêmio nos Estados Unidos. Ser feita à mão traz a uma obra uma superioridade intrínseca? A resposta — ou talvez a provocação — é que o fazer manual não garante uma experiência estética mais ou menos autêntica do que algo criado digitalmente. Pelo menos não de modo apartado do seu contexto social e da forma como essa sociedade está disposta a lidar com a pergunta original: Afinal, o que é arte?

Por trás da repulsa de parte da classe artística à IA, também pode residir um receio muito humano e nem tão intelectual assim: o simples medo de perder o monopólio de certos saberes técnicos e conceituais que até hoje a transformava em uma casta.

Essa resistência nos leva a um dilema maior: a democratização do fazer artístico. Se todos somos artistas, ninguém é artista. O que antes era privilégio de poucos agora se abre àqueles dispostos a explorar essas novas ferramentas que podem materializar ideias pulando a etapa automatizável do artesanato.

Tentemos encarar a inteligência artificial não como uma ameaça, mas como uma continuidade natural de um movimento histórico em que a natureza da arte sempre foi a de romper fronteiras, ampliar definições e, inevitavelmente, desafiar o nosso conceito de valor, que é, no fim do dia, ele próprio arbitrário e artificial.

A IA é, nesse sentido, uma espécie de lente que amplia as inquietações contemporâneas e convida artistas a revisitarem seus próprios limites criativos. Com as ferramentas generativas, é possível experimentar com materiais digitais que, da mesma forma que os suportes tradicionais, podem ser manipulados, ressignificados e transformados em algo novo. O que diferencia esses processos é a velocidade e a acessibilidade que possibilitam a produção de obras que dialogam com o presente em tempo real, como aconteceu com tantas outras atividades humanas.

Ao mesmo tempo, a IA provoca uma reflexão sobre a autenticidade e o valor do fazer artístico. Enquanto na pintura clássica o gesto manual era um testemunho de habilidade, hoje o gesto pode ser o conceito. A ferramenta, seja ela um pincel, um computador ou uma rede neural, é apenas o meio. A arte, no fundo, reside na capacidade de questionar, de criar sentido e de ressoar emocionalmente com quem a observa.

Por fim, ao olharmos para as transformações provocadas pela IA, podemos enxergar nelas uma nova oportunidade para a arte se reinventar, como já fez tantas vezes ao longo da história. Não é a primeira vez que a tecnologia desafia as estruturas estabelecidas e, certamente, não será a última. Assim como aconteceu com a fotografia, o cinema e até mesmo a impressão em série, a IA se insere como mais uma ferramenta capaz de expandir os limites do imaginário humano. A arte não desaparece. A arte, como sempre, se adapta e encontra novas formas de existir.

Daniel Conte (@danielconte75) é graduado em Letras, mestre em Literatura Comparada e doutor em Literatura Brasileira, Portuguesa e Luso-africana. É coordenador do programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais da Feevale. Acredita em uma sociedade laica em que cada sujeito tenha a liberdade de narrar-se desde sua condição imaginária..

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