GARRAFINHAS EM PERFEITO ESTADO EMOCIONAL.

Daniel Conte

Eu nunca tinha dado a dimensão necessária para algumas coisas de minha vida.

Eu nunca tinha entendido muito bem o Fernando Pessoa, quando ele escreveu: “Navegar é preciso, viver não é preciso”; nem a Clarice Lispector, quando disse que “a vida é um soco no estômago”; nem o Zaruq Alqif, um poeta palestino de quem gosto muito, no momento em que afirmou: “preciso das arestas do mundo para sentir meus pés!”. Isso me passava soslaiando a vida no andar de centenas de leituras, mas, quando me fiz pai, pela primeira vez, as coisas mudaram.

E a vida e a poesia se tornaram um livre trânsito entre o concreto e o abstrato; se tornaram um corpo mole e atravessável. Um corpo suscetível à dor, ao escárnio, às paixões dormentes, ao excesso de amor e de ódio.

Meus processos sociais foram alterados; a dimensão que eu atribuía aos bens culturais foi alterada, ganhando uma maior importância, e percebi que a vida é um contrato com a dor e com o desamparo. O valor residiu naquilo que sustenta qualquer sujeito no espaço e dentro dos contratos sociais: o afeto. A música, as artes, a literatura e a comida foram os astros desse hiato de mim. É nesse contexto que vivi tão intensamente, que sofri com tempo e com qualidade de sofrimento nunca antes experimentada; foi, aí, que me encontrei.

Me encontrei mínimo em limites comportamentais que me deram um território de mim às avessas, em excessos, em angústias, em devaneios. As palavras se tornaram fortes demais, longas demais e ruidosas demais. Os gestos se converteram em rituais vigiados. O sono tornou-se raro e o carinho vinha disfarçado de tudo, menos dele mesmo.

E eu juntei pedaços de razão artificial durante 26 anos. Cada garrafinha traz uma época da minha vida vivida com meu filho. Há ali pedaços de incubadora hospitalar, de pré-escola, de fragmentos de festas de aniversário, de desorganizações de humor matinal; de cabelos puxados à revelia da angústia, de um “eu te amo” depois de muitos anos, de abraços atravessados, de regulações de almoços de sábados tardios, de crises parentais, de desejos de sumir e de uma meia nova pro futebol. Foi recolhendo estes restos de equilíbrio induzidos que a imprecisão da vida se tornou, para mim, campo de delírio.

Daniel Conte (@danielconte75) é graduado em Letras, mestre em Literatura Comparada e doutor em Literatura Brasileira, Portuguesa e Luso-africana. É coordenador do programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais da Feevale. Acredita em uma sociedade laica em que cada sujeito tenha a liberdade de narrar-se desde sua condição imaginária..

Daniel Conte, Garrafinhas Em Perfeito Etado Emocional. (2022)