GARRAFINHAS EM PERFEITO ESTADO EMOCIONAL.
Daniel Conte
A Casa Bauhaus, com sua geometria disciplinada e o rigor funcional das linhas, ergueu-se como um manifesto da razão e da economia formal, desprezando o excesso da significação. No entanto, sob essa clareza quase ascética, há um silêncio: o da fauna que não foi representada. As aves, os insetos, os corpos pulsantes da natureza ficaram fora do enquadramento da estética moderna, substituídos por ângulos, volumes e proporções humanas. A ausência dos animais, outrora figuras simbólicas do instinto, da metamorfose e das narrativas cosmogônicas, marca uma ruptura sensível na história da arte: a domesticação da forma expulsou o imprevisível, o rugido, o voo. Assim, a Bauhaus, embora símbolo de liberdade criadora, tornou-se também o retrato de uma modernidade que preferiu o cálculo ao canto, o concreto ao vivo, o projeto à pulsação orgânica do mundo, o conceito à volatilidade dos corpos.
É isso que se recupera nesta série iniciada com o Gato-Cortázar, em que o animal ressurge como signo daquilo que foi reprimido pela lógica da forma, um gesto de reinscrição da vida no espaço arquitetônico. A metodologia adotada tem como finalidade a constituição de intervenções urbanas por meio da materialização de formas escultóricas originadas a partir de referências imagéticas. Tomando como ponto de partida a imagem de um gato, desenvolveu-se um modelo tridimensional digital que, posteriormente, foi processado em um software slicer, responsável pela geração das camadas necessárias à impressão.
O modelo foi impresso em 3D com o uso de filamento de PLA (ácido polilático, material biodegradável e sustentável), resultando em uma peça física que atua como matriz para a confecção de moldes de silicone, os quais serão utilizados nas etapas subsequentes de produção e inserção das obras no contexto urbano. Nesse processo, o retorno da figura animal assume um caráter simbólico e político: reintroduz o orgânico e o sensível na paisagem modernista, reescrevendo a fauna ausente no corpo da cidade.
Assim, o conjunto apresentado pode ser lido como uma espécie de atlas afetivo da matéria. Cada pintura carrega um tempo próprio, feito de camadas que se acumulam como as estações, as marés, os ciclos da floresta. Nelas, o humano não é centro, mas parte do fluxo, um corpo a mais entre tantos outros corpos que compõem a paisagem. Essa consciência da interdependência, tão urgente no debate climático contemporâneo, é o que faz de sua obra uma contribuição singular: uma pintura que, antes de querer explicar o mundo, decide senti-lo.
Daniel Conte (@danielconte75) é graduado em Letras, mestre em Literatura Comparada e doutor em Literatura Brasileira, Portuguesa e Luso-africana. É coordenador do programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais da Feevale. Acredita em uma sociedade laica em que cada sujeito tenha a liberdade de narrar-se desde sua condição imaginária..
Daniel Conte. Projeto vetorial do Gato-Cortázar. (2024)