ARS VOLAT, IMAGO MANET. A PAREDE AINDA É O LUGAR DA ARTE?

Roger Monteiro

Tote bag A grande onda de Kanagawa disponível na loja online Sea Bags Maine, a partir de $195.

O mercado de arte mudou.

Essa afirmação, repetida à exaustão por uma legião de mentores que disputam a atenção de aspirantes a artistas nas redes sociais, prometendo atalhos para o sucesso, ecoa o que ocorreu na indústria da música há duas décadas: o fim dos intermediários. Curadores, galeristas e marchands seriam, segundo eles, figuras obsoletas.

No mundo real, entretanto, as coisas não são simples assim. No mercado dos artistas iniciantes, ou mesmo no dos emergentes, a venda de obras, com ou sem intermediários, vem enfrentando desafios significativos. O saldo das exposições recentes nessa camada da pirâmide revela uma tendência incômoda: poucas ou nenhuma venda. Ainda assim, as pessoas continuam comprando e pendurando em suas paredes reproduções de obras icônicas, como A Dança, de Matisse, O Beijo, de Klimt, ou A Noite Estrelada, de Van Gogh. Essas imagens são todas coloridas, alegres, solares.

O mesmo vale para obras brasileiras, como as de Tarsila do Amaral, recentemente descoberta pelo grande público, e Romero Britto, que a comunidade artística ama odiar. Esses trabalhos são reconhecidos instantaneamente, combinam com o sofá da sala e, quem sabe, o mais importante: são baratos. Adquirir a reprodução de uma obra clássica é, em grande parte, um ato automático, que não exige atenção. Embora essas pinturas tenham sido pontos de inflexão na história da arte, o tempo e o mercado as transformaram em uma espécie de fast food cultural. O comprador não corre risco: ele se sente seguro, imune a críticas. Ao escolher Van Gogh, Klimt ou Mondrian, ele tem a certeza de estar adquirindo algo culturalmente validado, uma obra que não precisa responder à pergunta primordial: isso é arte? O artista contemporâneo, por mais talentoso que seja, não possui esse selo de garantia que décadas de prestígio conferem a uma obra icônica. Apreciar a arte contemporânea exige estabelecer uma série de relações que podem intimidar, o que é irônico, considerando que essas mesmas imagens hoje unânimes foram, em seu tempo, profundamente controversas.

Não se trata, portanto, de rejeição à arte em si. Não estamos falando de filisteus incapazes de reconhecer algum valor no ato estético, uma vez que a escolha por essas reproduções pressupõe um conhecimento rudimentar da história da arte, conhecimento que não se adquire sem um mínimo de interesse. Mas, se há interesse, por que ele se limita à cópia industrial e não se estende à originalidade de uma obra inédita?

A popularidade de A Grande Onda de Kanagawa, de Hokusai, ilustra bem essa transformação. Originalmente uma xilogravura produzida em 1831 como parte da série Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji, a imagem não apenas sobreviveu ao tempo, mas se tornou um símbolo gráfico universal. Hoje, A Grande Onda está em todo lugar: capas de celular, almofadas, camisetas, louças, cadernos e até em máscaras cirúrgicas. Essa massificação levanta uma questão: quando uma obra de arte se torna um ícone pop, ela mantém sua identidade artística ou se transforma em um artefato cultural, reduzido a um elemento visual reciclável?

A pandemia acelerou mudanças que já estavam em curso no mercado da arte. Com as galerias fechadas e os eventos presenciais suspensos, a comercialização migrou para o ambiente digital. As exposições passaram a ser acessadas através de telas, consolidando uma relação mais efêmera e desmaterializada com a imagem. Nesse novo contexto, obras originais perderam espaço para formatos mais acessíveis, reprodutíveis e imediatos. A venda de arquivos digitais, NFTs e prints explodiu. O consumo de arte se adaptou à lógica da cultura digital: o que importa não é possuir a obra, mas ter acesso a ela, compartilhá-la e integrá-la à experiência virtual. Isso reforça a ideia de que a arte está se tornando cada vez mais um atributo transitório, e não um bem durável. Se antes um quadro era um objeto a ser adquirido e preservado, hoje ele pode ser substituído por um post no Instagram. Existe até um serviço de assinatura que exibe as obras mais importantes dos melhores museus no tempo ocioso da sua televisão — vendem até molduras para o aparelho. O valor não está mais na posse, mas na circulação e na replicabilidade da imagem. Alguém ligue para Walter Benjamin.

Parte dessa transformação pode ser explicada pela relação das pessoas com a “arte retinal”, termo cunhado por Marcel Duchamp para criticar obras criadas apenas para agradar os olhos, sem engajamento conceitual. Se a função da arte é meramente visual e decorativa, a originalidade se torna secundária. O que importa é o impacto imediato da imagem, sua capacidade de preencher um espaço e harmonizar-se com o ambiente. Esse raciocínio explica por que as pessoas não compram quadros originais, mas adquirem tote bags, camisetas, canecas e capas para iPads estampados com as mesmas imagens que ignoram como arte de parede. O prazer visual persiste, mas é direcionado a objetos de uso cotidiano. A arte torna-se um diferencial estético em uma transação prática.

Poucas imagens ilustram tão bem esse fenômeno quanto o clássico stencil de Che Guevara, baseado na fotografia de Alberto Korda. Criado para registrar um líder revolucionário, o retrato foi gradualmente transformado em símbolo gráfico, um clipart esvaziado de seu contexto original e absorvido pelo mercado. A mesma imagem que estampava bandeiras de movimentos anticapitalistas passou a figurar em camisetas vendidas em lojas de departamento. É um exemplo de como o mercado se apropria de símbolos visuais para esvaziá-los de seu significado político, reduzindo-os a uma estética vendável.

Por outro lado, essa imagem continua sendo reproduzida informalmente, em murais, pichações e produtos piratas vendidos em feiras populares. A apropriação não acontece apenas pelo mercado tradicional, mas também pela rua, que resgata a arte como símbolo de resistência e identidade coletiva.

A transformação da arte em produto utilitário, acessório de consumo e ícone pop dialoga com a adaptação da máxima latina verba volant, scripta manent — as palavras voam, os escritos permanecem. No contexto da arte contemporânea, pode-se dizer que ars volat, imago manet — a arte se dispersa, mas a imagem permanece. Se o objeto artístico tradicional enfrenta dificuldades no mercado, a imagem sobrevive pela sua reprodutibilidade infinita. O futuro talvez não esteja mais nos quadros pendurados, mas na circulação massiva de ícones que se incorporam ao nosso cotidiano, seja em produtos, telas digitais ou mesmo o imaginário coletivo.

É claro que o fato de menos pessoas investirem em quadros originais não significa que esse mercado vá desaparecer. O topo da cadeia alimentar do sistema da arte, onde circulam apenas valores de seis dígitos, está seguro. Mas as vendas aqui embaixo sugerem uma necessidade de adaptação. Se a arte sobrevive atrelada à funcionalidade, os artistas talvez precisem repensar sua inserção nesse novo cenário. Ainda existe lugar para a arte como um objeto de pura contemplação pendurado na parede, ou ela precisa justificar sua existência por meio da funcionalidade? Talvez seja necessário abandonar a noção de que arte e produto são conceitos opostos e enxergar que, em um mundo saturado de imagens, uma obra só sobrevive se encontrar novos meios de circulação. Se a parede não for mais o destino final da arte, talvez o futuro esteja em telas que se dobram, roupas que contam histórias ou objetos cotidianos que carreguem mais do que um simples desenho.

O desejo por imagens que dialoguem com o espectador persiste porque ele é humano. Mas a forma como elas são consumidas de fato mudou. Se antes a arte ocupava um espaço exclusivo e, por que não, sagrado, hoje ela se dilui entre produtos, estampas e objetos utilitários. É um retorno, à maneira da sociedade de consumo, a um estado original em que a arte esteve ligada a um propósito não exclusivamente estético, mas religioso, filosófico, moral. O desafio é buscar novos meios para que a arte continue sendo experiência, criação e questionamento, sem se tornar apenas mais um padrão decorativo replicado à exaustão.

Roger Monteiro (@graphichaos) é graduado em Letras e pós-graduado em Filosofia e Artes Visuais com especialização em História da Arte e da Cultura Visual. É artista gráfico, casado com a Olívia, e pilota uma motocicleta velha chamada Lady Luck.

Poster de A Noite Estrelada, de Van Gogh, disponível na loja online Postery nas dimensões 30x40cm, 50x70cm e 70x100cm. A partir de €17,99 sem moldura.

Bandeira Che Guevara, em poliéster, feita na China.
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