ALÉM DO PÓS-HUMANO: O ESPELHO TORTO DO GLITCH.
Roger Monteiro
Ai-Da é um robô humanoide com inteligência artificial e braços mecânicos. Como robô, ela é por si só um objeto de arte, levantando questões em torno da biotecnologia e do transumanismo.
Vivemos um momento curioso: as máquinas nunca falaram tanto, mas talvez nunca tenhamos ouvido tão pouco. A histeria inicial em torno da inteligência artificial, ora messiânica, ora apocalíptica, começa a se dissipar como a fumaça de um espetáculo que já terminou. Aquela promessa de uma revolução cognitiva definitiva se converteu em ruído de fundo, em timeline. O discurso do pós-humano, que um dia soou como a fronteira final entre carne e código, já parece datado, preso à ingenuidade de um futurismo de PowerPoint. A verdade é que a máquina não quer nos substituir nem nos salvar; quer apenas nos compreender. E, nesse gesto, nos imita. Mas toda imitação é também uma caricatura, e talvez seja justamente aí que resida o seu poder: ao nos copiar, a máquina nos devolve um reflexo distorcido, mais verdadeiro do que o original.
Na arte, o impacto dessa distorção é palpável. Passado o primeiro encantamento técnico, a produção mediada por IA começa a abandonar o virtuosismo da ferramenta e a buscar algo mais impuro. O interesse desloca-se do resultado para o processo, do controle para o acaso. É no erro, no glitch, na resposta truncada, que o gesto humano reaparece. O artista já não compete com a máquina, nem tenta dominá-la; ele a provoca. Usa-a como se provoca um oráculo, para ver até onde ela falha. Essa nova relação não é de submissão, mas de atrito. Um atrito que gera sentido, porque o sentido nasce sempre do desvio.
Há algo de profundamente poético no erro da máquina. Quando um algoritmo erra, ele nos oferece um retrato involuntário do engano. É do instante em que o cálculo se curva à incerteza, e a precisão se confunde com o desejo. Talvez por isso os trabalhos mais tocantes deste novo tempo não sejam os que alardeiam realismo, mas aqueles que deixam ver as costuras da simulação. A emoção não está na imagem perfeita, mas na hesitação entre o que é e o que parece ser. Depois do pós-humano, o que importa não é o que a máquina cria, mas o que ela sente por engano.
A saturação das imagens sintéticas, multiplicadas até o esgotamento, provocou um efeito curioso: reacendeu o fetiche do toque. O mundo digital, com toda sua promessa de velocidade e imaterialidade, acabou devolvendo valor à lentidão. A frieza do código fez da tinta um ato de resistência. A colagem, o desenho, a gravura, gestos que exigem corpo e tempo, voltaram a carregar uma aura quase ritual. É o índice da nostalgia, é uma reação. O toque virou dissidência, o analógico virou manifesto. A nova estética do real não é o oposto da tecnologia, mas da aceleração. Ela prefere o silêncio do feed, o intervalo ao estímulo, vive no hiato cada vez mais raro das coisas.
Também é curioso observar como esse retorno do corpo vem acompanhado por uma desconfiança da autoria. O artista já não é um nome, mas um sistema de decisões. O que chamamos de estilo talvez seja apenas uma forma de ruído pessoal, uma falha recorrente. A IA, ao nivelar as competências técnicas, tornou visível o que sempre foi invisível: a diferença humana não está na execução, mas na intenção. O que nos distingue da máquina não é a capacidade de produzir imagens, mas a necessidade de atribuir-lhes sentido. E essa necessidade continua sendo, por enquanto, incuravelmente humana.
O pós-humano promete superação; o que veio foi reedição. Estamos diante de um humano remixado, consciente de suas próteses e de suas ilusões. Um ser que já não vê a tecnologia como extensão, mas como pele. Vivemos cercados de sensores, telas e assistentes que nos observam enquanto observamos. A fronteira entre sujeito e dispositivo dissolveu-se, e o olhar tornou-se recíproco. Olhe para dentro do abismo e o abismo olha para você de volta. Não vemos mais o mundo, ele nos devolve o olhar em pixels. Talvez este seja o verdadeiro ponto de inflexão: não é o homem que sonha ser máquina, mas a máquina que, ao tentar nos compreender, nos faz reaprender a sermos humanos.
Depois do pós-humano, resta o humano. Imperfeito, cansado, vulnerável, mas ainda teimosamente sensível. Resta o gesto, mesmo que mediado por mil algoritmos. Resta a hesitação da imagem, o instante em que não sabemos se ela foi feita por alguém ou por algo, e percebemos que essa dúvida, afinal, é irrelevante.
Porque a arte nunca foi sobre autoria, mas sobre afeto. E o afeto continua sendo a linguagem que nenhuma máquina domina por completo.
Roger Monteiro (@graphichaos) é graduado em Letras e pós-graduado em Filosofia e Artes Visuais com especialização em História da Arte e da Cultura Visual. É artista gráfico, casado com a Olívia, e pilota uma motocicleta velha chamada Lady Luck.